(Textos de tempos idos. Algumas palavras são estranhamente actuais....)
...Primavera de 1999...
Um conto de um cavaleiro perdido.
... a cruzada estava perdida.
O cavaleiro caminhava, só, pela paisagem devastada de uma guerra perdida, em que ninguém vencera. Amargamente, lembrava-se da bravura com que conseguira lutar contra probabilidades tão adversas. Uma bravura que, apesar de tudo o que tornara horrível toda aquela sucessão de batalhas, o havia feito sentir-se vivo. Orientado. Com um objectivo. Útil. Quase nobre.
Agora, tudo havia acabado. A sua cota de malha estava quase totalmente desfeita, e manchada de sangue seco. A sua armadura amolgada, com manchas de ferrugem numa outrora modesta mas resplandecente armadura prateada. A sua capa negra era um farrapo, suja de terra, sangue... E a sua fiel espada, força de vida com que conseguira resistir a tanto, tanto, tanto!... Partida. A meio. E com ela, a sua vontade de continuar vivo.
O cavaleiro caminhava de uma forma pouco firme, cambaleante e irregular. Por debaixo das suas vestes, muitas feridas, quase todas mal saradas, tornavam cada passo um tormento silencioso. E algumas dessas feridas ainda escorriam a sua vitalidade. Por mais que o cavaleiro tivesse tentado estancar as feridas, estas eram simplesmente demasiado grandes.
Já há um tempo, não muito, mas já razoável, ele caminhava, quase errante, pelos restos daquela sucessão de contendas, contendas de anos e anos. Era tudo tão estranho. A maneira como tudo acabara, assim, correspondia aos seus piores pesadelos. Ele desejara, se não vencer a cruzada, pelo menos poder ter a honra e o descanso de morrer no campo de batalha. Mas sobreviver assim, sendo o único a restar, numa luta que perdera, para além de qualquer esperança... era um falso sobreviver. Por dentro, ele estava moribundo. O desespero que às vezes tomava o seu peito como uma garra fria, e o apertava, era de um nível tão inconcebívelmente descomunal que ele nem conseguia acreditar que fosse real. E ele sentia-o como um pesadelo, tão consistente e assustador como um.
Muitas vezes, pelos trilhos que seguia, o cavaleiro encontrava pessoas, com quem trocava impressões. Com muito cuidado, enrolava-se na sua capa, de forma a parecer apenas mais um viajante que há muito caminhava, e nada mais. Sorria, brincava, aceitava convites para pequenas refeições e festas. Por momentos, ele quase esquecia quem era, e permitia-se entregar a uma aveludada loucura, que servia de bálsamo às suas feridas, pelo menos às da sua alma. Mas eram momentos, vagos como tal, e acabavam. E ele lançava-se de novo à estrada, em busca de não sabia muito bem o quê.
Outras vezes, emboscavam-no nesses trilhos. Bandidos, antigos inimigos e falsos aliados e aliadas, atacavam-no, buscando conseguir o que restava dele, arrastá-lo e prendê-lo a uma desesperança eterna e assegurada. Com tudo o que restava, mesmo empunhando uma espada partida, ele rechassava essas investidas. Só que era cada vez mais difícil...
Mas agora, nesta altura, ele estava mais longe de tudo e todos do que alguma vez estivera. Passeava por zonas inabitadas, onde a natureza era a única ocupante, onde nem um rosto humano havia, para lhe oferecer ou esperança, ou dor.
Uma tristeza há muito contida ameacava irromper pelo seu peito afora, rasgando os retalhos da sua dorida alma, agora que ele se aproximava de uma paragem na sua caminhada sem destino.
Uma costa escarpada. O cheiro a maresia impregnava as suas narinas, e fazia-lhe esbocar um leve sorriso. No alto de uma encosta, ele observava o mar, o infindável oceano, e a paz imensa que representava a linha daquele horizonte quase ilimitado.
Gaivotas voavam pelo horizonte, como graciosos pequenos anjos. Golfinhos saltavam pelas ondas, com uma felicidade jovial que quase lhe causava inveja. Sentia-se tão velho por dentro... O cavaleiro começou a sentir lágrimas raiarem-lhe os olhos. Mas algo, um pormenor, o fez desviar os olhos.
Lá bem fundo, na linha do horizonte, nuvens brancas, suaves, delineadas, sobrevoavam o céu. A paz, a calma, o conforto que transmitiam pareciam acenar ao cavaleiro uma promessa de algo melhor. O descanso que ele há tanto desejava, há tanto necessitava... Frevorosamente, ele desejou que aquele monte fosse, de facto, uma montanha voadora de seda e algodão, onde ele se pudesse deitar, esquecer a dor, a tristeza, a mágoa, a solidão, o desconforto, o desespero... Timidamente, ele estendeu a mão calejada em direcção a essa branca imensidão, tentando alcançá-la, puxá-la para perto de si. Perfeitamente consciente do ridículo, do ilusório, de tal tentativa. No inicio ele não quis saber. Mas observando o seu braço ferido, a sua mão cheia de cicatrizes, e a VERDADEIRA distância entre ele e aquele falso paraíso... a consciência de tal facto estraçalhou-lhe o auto-controle de formas inimagináveis. Lágrimas irromperam-lhe pelas faces, e o cavaleiro caiu de joelhos, num pranto infindável.
E quando o infindável terminou, o cavaleiro ergueu-se, lentamente, e contemplou mais uma vez o oceano. Baixou os olhos, e na sua bainha de coro negro, viu o cabo da sua espada partida. Puxou-a para fora, desembainhando-a. Olhou inexpressivamente, contemplativamente, para ela. Com um esgar, reuniu o que lhe restava das suas forcas, e atirou a espada pela encosta abaixo, num voo, até ela mergulhar longe, no oceano. Afundando-se. Desaparecendo. Como a sua vontade de viver. Como a sua força. Como a sua alma.
Ele desistia.
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...Fevereiro de 2003...
...o resultado da batalha, tinha sido... satisfatório. Algumas feridas escorriam sangue pelo corpo do guerreiro, mas os corpos dos demónios vencidos, prostrados à sua frente, compensavam-nas todas. Com um sorriso determinado, malicioso, o guerreiro olha para os lados, confirmando que os seus aliados, nesta luta, também ali ainda estão, e se mantêm lado a lado com ele... A batalha prossegue. De espada em riste, e com um sorriso quase arcano, o guerreiro lança-se para a batalha. Mais demónios a vencer. E enquanto luta, toda a dôr, todo o vazio, perdem o significado. Apenas a vitória resta. Apenas a camaradagem se mantém. Puro esquecimento...
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...Algures em 2001...
E das trevas da escuridão, o silêncio veio.
A luz apagou-se. O que restava, fragmentou-se em mil miríades, intensas, refulgentes, e dolorosamente breves.
Tinha acabado.
De joelhos, e mãos no chão, ele olha para o solo. Tenta encontrar algo, segurar o que se partiu. Mas nada. As forças saíam, numa fuga louca atrás da luz ida.
A beleza que ele havia conhecido…
…memórias.
A doce melancolia acalma, suaviza sem eliminar. Mas a memória do sentimento perdido… acutilante gume… continua a surgir, em pontadas cruéis e sem nome.
…e de pé e altivo, ele avança…
3 comments:
Continua a minha "viagem" procurando-te, encontrando-me...
Calmamente, na companhia de um cigarro, "devorei", deixei-me tocar por cada letra deste texto...
Deixe-me voar no imaginario,à medida que lia, o cavaleiro estava mais perto de mim...a sua força que ele mesmo desconhecia de inicio ressaltava na minha forma de ver e encarar as suas mágoas, as suas dores, as suas feridas...
...um beijo enorme em ti
...Jasmim...
... :(
*...arrepio... aperto "cá dentro"...*
*abraço*
(Obrigado, doce amiga... mesmo...!)
"O sorriso… o olhar… os raios de ouro em forma de fios fartos de cabelo… O manjar de doçura em forma de lábios… O terno calor apaixonado em forma de sorriso… Mundos de esperança em forma… de um… olhar…"
E no teu olhar podes ver essa Esperança
és determinado, aplicado,como jamais vi alguém
Ao ler estes textos,coração apertado, de lágrimas nos olhos ... sorrio-te
Pois tu és incrivel,uma pessoa impar...e sim...
E sim...
De pé altivo... tu avanças
Beijo e abraço-te ...com o sentimento mais profundo do meu coração
(*)
(*)
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